A integração entre o sistema público e o setor privado de saúde entrou, em 2025, em um novo patamar no Brasil. A decisão do Ministério da Saúde de incorporar dados dos planos de saúde à Plataforma Nacional de Saúde Digital (PNSD) marca o início de um movimento estrutural: a construção de um ecossistema nacional unificado de informações clínicas, capaz de acompanhar o paciente ao longo de toda a sua trajetória.
Hoje, o sistema suplementar cobre cerca de 51,7 milhões de beneficiários (ANS, 2025), enquanto o SUS atende aproximadamente 75% de todos os procedimentos realizados no país. Essa sobreposição demonstra que os brasileiros transitam entre vários pontos de cuidado, um desafio que na visão de especialistas, exige uma mudança de arquitetura e não apenas de eficiência.
Interoperabilidade: do dado fragmentado ao cuidado contínuo
A integração dos dados do SUS e dos planos privados é vista como uma das ações mais transformadoras da última década. Embora frequentemente tratada como medida de eficiência, redução de exames duplicados, padronização de informações e diminuição da burocracia, seu impacto real é mais profundo.
Thiago Julio, líder de Inovação Médica no Hospital Israelita Albert Einstein, explica que a jornada do paciente sempre atravessou os dois mundos. Ele observa que não existe, na prática, um "paciente do SUS" e um "paciente do privado", mas um indivíduo que circula entre convênios, atendimentos públicos, emergências e programas de vacinação.

Segundo ele, a interoperabilidade não deve ser entendida apenas como uma entrega operacional, mas como um alicerce para reorganizar a maneira como o sistema de saúde enxerga o cidadão.
Como reforça o médico, “a jornada tem que ser contínua e íntegra, independente do local ou do sistema em que ele está sendo atendido”, e integrar dados é o passo para que esse cuidado exista de forma contínua, do pré-natal ao envelhecimento.
Essa visão se reflete na política pública recente: o Ministério da Saúde anunciou que a integração com a PNSD permitirá consolidar o histórico clínico do paciente em uma interface única, acompanhando a linha de cuidado ao longo da vida.
Parcerias público-privadas ganham relevância: o caso M’Boi Mirim
A interoperabilidade também influencia a forma como o governo e instituições privadas se organizam para oferecer serviços. O exemplo mais emblemático é o Hospital Municipal Dr. Moysés Deutsch – M’Boi Mirim, gerido pelo Einstein em parceria com a Prefeitura de São Paulo.
Atendendo uma das regiões mais populosas da capital, a unidade se tornou referência em gestão eficiente, integração de protocolos clínicos, digitalização de processos e implantação de tecnologias assistenciais, provando que modelos híbridos podem elevar níveis de qualidade e ampliar o acesso.
O resultado fortalece uma percepção crescente no setor: PPPs bem estruturadas não substituem o SUS, mas o potencializam.
IA e deep techs como equalizadores entre redes públicas e centros de excelência
A adoção de IA em triagem, regulação, leitura de exames e predição de risco vem democratizando tecnologias antes restritas a hospitais privados de alto padrão. Em São Paulo, ferramentas de automação já reduziram o tempo de análise de exames e agilizaram o fluxo de atendimento em unidades públicas.
Julio reforça que a revolução tecnológica em saúde não pertence apenas aos grandes centros privados. Segundo ele, as inovações que realmente escalaram no Brasil foram aquelas ligadas à digitalização básica e à eficiência operacional. Como afirma, “boa parte das startups que mais tracionaram nos últimos dez anos tem a ver com prontuário, prescrição, digitalização básica, e isso impacta tanto o SUS quanto o privado”.
Embora biotechs avançadas pareçam distantes da realidade pública, o especialista destaca que seus alvos terapêuticos são, invariavelmente, doenças prevalentes na população atendida pelo SUS. Por isso, o interesse da deep tech em operar também com o sistema público é natural, estratégico e sustentável.
Mercado financeiro reposiciona o olhar: SUS deixa de ser obstáculo e vira mercado
A integração entre os dois setores começou a atrair um novo perfil de investimento. Fundos especializados e corporações globais vêm direcionando capital para empresas que atuam na interface público-privada, seja em dados, IA, atenção primária, regulação ou biotecnologia.
Para o executivo, essa mudança ocorre porque o investidor passou a enxergar o SUS não como uma barreira burocrática, mas como um mercado de escala incomparável. Em suas palavras, “não faz sentido dividir o privado do público quando pensamos em tamanho de mercado”. A lógica da inovação, explica, está mais associada à linha de cuidado e à prevalência das doenças do que ao tipo de operadora que paga a conta.
Sobre o comportamento do mercado, Julio lembra que startups de saúde historicamente evitavam o setor público devido às licitações demoradas e à percepção de burocracia. No entanto, essa lógica está mudando. Ele observa que “não faz sentido dividir o público do privado quando pensamos em tamanho de mercado” e argumenta que empreendedores e investidores precisam colocar o SUS no centro da estratégia, tanto pelo impacto populacional quanto pelo papel de cliente estrutural do ecossistema brasileiro de saúde.
Uma nova arquitetura do cuidado: integração como política de Estado e vetor econômico
A convergência entre SUS e iniciativa privada traz implicações que vão além da saúde digital. Ela reorganiza:
- os modelos de financiamento,
- a lógica de construção de linhas de cuidado,
- o desenho das redes de atenção,
- os incentivos à pesquisa clínica,
- e o fluxo de capital em saúde.
Com escalas integradas, o país passa a construir bases populacionais robustas, essenciais para tecnologias de IA e medicina preditiva, ao mesmo tempo em que reduz custos sistêmicos com duplicidades e ineficiências.
Especialistas observam que essa convergência inaugura uma nova arquitetura de cuidado, na qual a fronteira entre público e privado deixa de ser barreira e se torna plataforma de colaboração. O Brasil, com o maior sistema público universal do mundo, tem a oportunidade de se consolidar como um dos maiores laboratórios globais de inovação em saúde, combinando escala populacional, capacidade tecnológica e novos fluxos de investimento.
A Green Rock é uma gestora de investimentos independente, focada em negócios de Venture Capital e Private Equity de alto potencial no setor da saúde do Brasil e toda a América Latina.



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