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Doenças Negligenciadas: o retrato da invisibilidade e a urgência da inovação em saúde

Da esquistossomose à hanseníase, o Brasil enfrenta velhos parasitas e novos desafios científicos em pleno século XXI

Gabriela Almeida

Apesar dos bilhões de dólares anuais investidos em inovações de ponta como oncologia, terapias gênicas e wearables de monitoramento remoto, a realidade é que 1,7 bilhão de pessoas ainda convivem com doenças chamadas de negligenciadas — enfermidades que afetam principalmente populações pobres, tropicais e com baixa atratividade comercial.

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), mais de 20 patologias integram essa categoria, entre elas a esquistossomose, a doença de Chagas, a leishmaniose, a hanseníase e a filariose linfática.

Trata-se de um mercado de promessas escassas, onde o retorno financeiro é limitado, mas o potencial de impacto social e tecnológico é gigantesco. No cruzamento entre biotecnologia, inteligência artificial e políticas públicas, começa a emergir um novo campo de oportunidades — e de responsabilidade — para quem busca aliar ciência, propósito e inovação.

 

O retrato da negligência

O Brasil é palco de um paradoxo: é uma potência científica regional, mas ainda convive com doenças que deveriam estar restritas aos livros de história. As chamadas Doenças Tropicais Negligenciadas (DTNs) continuam a afetar milhões de pessoas, especialmente nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, onde a infraestrutura de saneamento e vigilância ainda é insuficiente.

Segundo dados do Ministério da Saúde e da OMS, as principais doenças negligenciadas no país incluem:

  • Doença de Chagas — afeta mais de 1,5 milhão de brasileiros, muitos sem diagnóstico, com prevalência em áreas rurais e periferias urbanas.
  • Hanseníase — o Brasil é o segundo país com mais casos no mundo, atrás apenas da Índia.
  • Esquistossomose — associada diretamente à falta de saneamento básico, atinge populações ribeirinhas e comunidades em vulnerabilidade.
  • Leishmaniose — em expansão para áreas urbanas, com aumento de casos graves e letalidade crescente.
  • Dengue e Chikungunya — a face mais visível da negligência, que expõe anualmente a fragilidade da infraestrutura de prevenção e controle de vetores.

Essas doenças formam o retrato de uma negligência que é tanto científica quanto social: o investimento é baixo, o diagnóstico é tardio e a resposta pública é fragmentada.

Como observa o infectologista Ricardo Diaz, “nunca foi possível controlar ou erradicar alguma doença infecciosa transmissível sem uso da vacina”. Ele ressalta que o enfraquecimento da imunização é um dos fatores que explicam o ressurgimento de infecções que deveriam estar controladas. “Na hora em que a gente começa a negligenciar e a diminuir o espectro da cobertura vacinal, a gente perde aquela barreira que impede a transmissão. Esse é um dos maiores riscos que enfrentamos hoje”, completa.

 

Esquistossomose: o caso emblemático

A esquistossomose talvez seja o símbolo mais nítido dessa negligência. Presente no Brasil desde o período colonial, a doença é transmitida por um verme que utiliza caramujos de água doce como hospedeiros intermediários. Seu ciclo de transmissão reflete falhas históricas em saneamento, educação e vigilância.

Hoje, os estados do Nordeste e do Sudeste concentram a maior parte dos casos, e estima-se que mais de 25 milhões de brasileiros vivam em áreas de risco. O tratamento, baseado em medicamentos antigos como o praziquantel, é eficaz, mas não impede as reinfecções.

A esquistossomose sintetiza o tripé que define as doenças negligenciadas: pouco apelo comercial, dependência do setor público e complexidade sistêmica, exigindo soluções que unam diagnóstico, saneamento, tecnologia e políticas sociais.

 

O cenário regulatório e a erosão da atenção pública

Em 2025, a Conitec recomendou a exclusão da oxamniquina da lista de medicamentos do SUS, alegando perda de relevância e dificuldade de aquisição. O gesto, aparentemente técnico, escancara um problema estrutural: o encolhimento do investimento público e da agenda de P&D em doenças negligenciadas.

O mesmo desfinanciamento atinge programas de hanseníase, leishmaniose e doença de Chagas, minando décadas de avanços obtidos com vigilância epidemiológica e produção local de insumos.

Para a OMS, sem incentivos e inovação, as metas de eliminação previstas na Agenda 2030 dificilmente serão cumpridas. Esse vácuo cria riscos sanitários, mas também oportunidades de cooperação intersetorial entre ciência, tecnologia e investimento social.

 

A cadeia de valor da inovação negligenciada

As doenças negligenciadas desafiam a lógica tradicional da indústria farmacêutica. Não basta descobrir uma molécula: é preciso construir ecossistemas de resposta.

A cadeia de inovação vai desde o diagnóstico e a vigilância epidemiológica até o tratamento, saneamento e acesso comunitário.

As oportunidades de transformação surgem em múltiplos pontos:

  • Diagnóstico rápido e portátil;
  • Monitoramento ambiental via sensores e IA;
  • Reposição de moléculas e reposicionamento de fármacos;
  • Telemedicina em áreas remotas;
  • Modelos híbridos de cooperação com o SUS.

Diaz lembra, contudo, que o desafio não é apenas técnico, mas de acesso: “Toda vez que a gente tem o desenvolvimento de alguma tecnologia mais moderna, seja para diagnóstico, seja para prevenção, o grande desafio é promover o acesso mais amplo. Tudo que é novo tem um custo muito mais elevado”.

Ele reforça que as inovações chegam de forma desigual — primeiro aos países ricos, depois às populações mais vulneráveis. “O avanço acontece, mas o acesso pode demorar. O que falta é entender que se você não disponibiliza qualquer prevenção ou diminuição de transmissão em um local mais pobre você está colocando em risco o mundo inteiro — como aprendemos com a Covid-19”, pontua o médico.

Tecnologias emergentes e novas fronteiras

O combate às doenças negligenciadas já começa a dialogar com o futuro. Na esquistossomose, pesquisadores usam IA para prever surtos e IoT para monitorar habitats de moluscos. Em hanseníase, algoritmos de imagem ajudam a identificar lesões precoces; em leishmaniose, modelos de machine learning antecipam áreas de risco com base em dados climáticos.

A biologia sintética e as técnicas de edição gênica, como o CRISPR, abrem caminhos para modificar organismos vetores, enquanto a saúde digital expande o alcance do diagnóstico e acompanhamento remoto.

O potencial disruptivo é enorme — e demonstra que as doenças tropicais podem se tornar laboratórios vivos de inovação científica.

 

Financiamento e impacto social

Historicamente, o desenvolvimento de medicamentos e soluções para doenças negligenciadas dependeu de organizações filantrópicas e alianças público-privadas, como a DNDi (Drugs for Neglected Diseases Initiative).

Nos últimos anos, cresce o interesse de fundos de impacto e de inovação social em apoiar projetos de biotecnologia tropical, diagnóstico acessível e vigilância digital.

Ainda que o retorno econômico seja modesto, o valor reputacional e o impacto ESG tornam esse campo uma oportunidade estratégica para players comprometidos com saúde e desenvolvimento sustentável.

 

Casos promissores e avanços científicos

O Brasil, apesar das restrições orçamentárias, abriga experiências notáveis:

  • A Fiocruz lidera estudos de novas moléculas contra esquistossomose e Chagas;
  • O Instituto Butantan desenvolve candidatos vacinais baseados em proteínas recombinantes;
  • A UFS e a UFAL testam tecnologias móveis e diagnósticos moleculares em campo;
  • Laboratórios públicos fortalecem redes de vigilância de vetores e saneamento.

Iniciativas que demonstram uma base científica sólida, mas ainda carente de coordenação, investimento contínuo e estratégias de escalabilidade.

 

Tendências e pontos de atenção

Com as mudanças climáticas ampliando áreas de risco e o crescimento urbano desordenado favorecendo vetores, as doenças negligenciadas tendem a se expandir geograficamente.

Segundo Ricardo Diaz, a comunidade médica precisa estar preparada para uma nova era de zoonoses e doenças emergentes: “Zoonoses são aquelas infecções que passam de animais para humanos, como vimos na Covid-19. E o aquecimento global facilita que essas infecções se fixem em locais onde antes não existiam, como estamos vendo com a dengue surgindo em regiões da Europa e dos Estados Unidos”.

A década será decisiva: a integração entre inteligência epidemiológica, dados ambientais e inovação social poderá definir o sucesso ou fracasso das metas globais de eliminação.

O futuro dessas doenças está menos nas moléculas e mais na capacidade de criar ecossistemas colaborativos, que unam ciência, política pública e tecnologia.

Apesar das oportunidades, o campo das doenças negligenciadas exige realismo:

  • Baixa margem comercial e dependência de compras públicas;
  • Riscos regulatórios e incerteza de demanda;
  • Infraestrutura precária e estigma social;
  • Barreiras logísticas e descontinuidade de programas.

Superar esses desafios requer planejamento, parcerias regionais e uma visão de longo prazo que vá além do ciclo político e financeiro.

A Green Rock é uma gestora de investimentos independente, focada em negócios de Venture Capital e Private Equity de alto potencial no setor da saúde do Brasil e toda a América Latina.