Em agosto de 2024, o Ministério do Trabalho e Emprego anunciou que a Norma Regulamentadora No.1 (NR-1) passaria por mudanças e entraria em vigor em 24 de maio de 2025. No entanto, o tempo estabelecido não foi suficiente para que as empresas se adaptassem, o que levou ao adiamento do início da vigência da atualização – que agora inclui riscos psicossociais –, para 26 de maio de 2026.
A atualização da NR-1 gerou reações entre entidades empresariais, que solicitaram o adiamento da vigência das novas exigências. A Confederação Nacional da Indústria (CNI) e o Serviço Social da Indústria (SESI) destacaram a falta de clareza em alguns pontos da norma e os riscos de insegurança jurídica para as empresas.
Já a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) e a FecomercioSP apontaram que a inclusão de riscos psicossociais no Programa de Gerenciamento de Riscos apresenta elevado grau de subjetividade, o que dificulta sua implementação prática, especialmente para pequenos e médios negócios. Em comum, essas entidades afirmam que ainda é necessário mais tempo de preparação para que as companhias consigam se adequar com responsabilidade e segurança às novas diretrizes.
Apesar das críticas, vale entender o que a nova norma propõe. Vejamos abaixo.
Uma NR-1 repaginada
Conforme apresentado na edição passada desta newsletter, a principal atualização exige a criação do Programa de Gerenciamento de Riscos (PGR). Dessa forma, será necessário avaliar e mapear em quais condições físicas, sociais e ambientais os colaboradores se encontram, de modo a prevenir o adoecimento mental. Junto a isso, as companhias devem ter também um plano de ação para realizar todas essas etapas, além das estratégias assistenciais para os que forem afetados.
Essa decisão é fruto de um cenário onde cada vez mais pessoas se afastam do trabalho devido às condições psicológicas. Entre os elementos que alimentam esse contexto, a psiquiatra e sócia-diretora da Ethos Psiquiatria, Emi Mori, aponta para a maior consciência sobre saúde mental e redução dos estigmas, o que leva mais pessoas a buscar ajuda. “Mas também houve mudanças no mercado de trabalho, como o aumento da carga de trabalho, menos recursos e exigências mais altas. Além disso, há um choque geracional: jovens querem equilíbrio entre vida pessoal e trabalho, enquanto muitas empresas nem sempre estão preparadas para corresponder”.
Consequentemente, “se a gente for analisar os dados de afastamentos — tanto do INSS quanto de pesquisas gerais —, vemos um aumento exponencial nos últimos cinco anos nos casos relacionados à saúde mental”, explica Mori. “O burnout virou tema recorrente e com isso surgiram questionamentos sobre o quanto o trabalho tem causado adoecimento psíquico”.
Esse cenário é confirmado por dados recentes, conforme mostramos abaixo.
Os dados da saúde mental no trabalho
De acordo com a Associação Nacional de Medicina do Trabalho (ANAMT), 30% dos trabalhadores brasileiros lidam com a síndrome de burnout. Ainda nesse sentido, a unidade brasileira da International Stress Management Association (ISMA), apresentou em 2023 os seguintes dados:
- 72% dos brasileiros estão estressados no trabalho;
- 32% dos brasileiros sofrem com da síndrome de burnout;
- O Brasil é o 2º país com mais casos de burnout – perdendo apenas para o Japão, que tem 70% da população nessa condição, embora outros estudos internacionais tragam diferentes rankings.
Dados do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) também indicam que os afastamentos por burnout aumentaram em 136% dentro de cinco anos – saindo do patamar de 178 diagnósticos em 2019, para 421 em 2023.
Não à toa, uma pesquisa de 2023 – feita pelo Infojobs, com 2.017 pessoas –, constatou que 86% das pessoas mudariam de emprego em busca de uma saúde mental melhor e por mais satisfação no trabalho. Além disso, dos entrevistados, 61% não se sentiam satisfeitos no trabalho e 76% conhecia alguém que se afastou das atividades laborais para cuidar do psicológico.
Bom, então quais são os próximos passos para mudar esse cenário?
A necessidade de abordagens diferentes
Na prática, as alterações da NR-1 representam a necessidade de mudança cultural nas empresas – em especial aquelas apegadas a práticas como: microgerenciamento; metas altas, irrealistas e inflexíveis; assédio moral e/ou sexual; falta de reconhecimento; e injustiças no ambiente.
O microgerenciamento — prática em que líderes supervisionam de forma excessiva e controlam cada detalhe do trabalho das equipes — tem sido apontado por especialistas como fator de risco para o bem-estar.
Nesse sentido, Mori destaca que a falta de autonomia é um dos elementos mais críticos: “O microgerenciamento pode ser muito adoecedor. Estudos confirmam que, além de reduzir a eficiência, o microgerenciamento gera ansiedade, desmotivação e pode contribuir para quadros de burnout. As grandes empresas já estão dando conta há bastante tempo do quanto isso tem impacto negativo. Porém, é como se agora a questão do ‘vamos cuidar da saúde mental dos nossos funcionários’ não fosse mais um faz de conta”, afirma.
Por outro lado, parte do mercado ainda vê esses fatores como subjetivos, o que pode dificultar a adaptação à NR-1. Além disso, até o momento, entidades como a Confederação Nacional da Indústria (CNI) e federações patronais não emitiram uma posição unificada sobre os possíveis impactos da nova norma. Nos bastidores, porém, especialistas apontam que algumas empresas já buscam se antecipar às exigências.
O futuro do trabalho com nova cultura, lideranças e tecnologia
A partir de maio de 2026, as empresas não só terão de mapear riscos psicossociais com maior precisão, como também repensar como lidam com a saúde mental no dia a dia.
Para Camila Cardoso, especialista em recursos humanos com passagens na liderança do setor em empresas como Ambev e P&G, esse é o momento de promover transformações profundas.
Nesse sentido, ferramentas como questionários psicossociais devem se tornar mais comuns para estruturar esse tipo de avaliação. O que, no caso da NR-1, “vai contribuir muito para que o RH e a alta liderança das empresas tenham acesso a informações que antes não estavam organizadas. O questionário psicossocial vai mostrar quantas pessoas estão sendo impactadas por problemas de saúde mental, uma questão que ainda é pouco visível”, afirma Cardoso.
Logo, “não dá mais para só falar que saúde mental é importante. Será necessário ter um plano, mapear risco e agir. Tudo isso deve mudar a cultura de trabalho, principalmente nesse modelo de alta performance em que vivemos atualmente, onde somos cobrados o tempo inteiro”, diz a líder de RH.
Para Camila, esses movimentos podem ser um ponto de virada para as empresas que quiserem caminhar para uma gestão de saúde mais consistente. “Começa com awareness, com os gestores ganhando visibilidade do que está acontecendo e então mudará a forma como trabalhamos e nos relacionamos nas empresas”. Nesse aspecto, ela destaca que algumas companhias já discutem temas como segurança psicológica e liderança com compaixão, mas grande parte do mercado ainda está distante dessas práticas.
Entre os outros elementos que podem ajudar a impulsionar tais mudanças, a ex-P&G acredita que a inteligência artificial será uma aliada importante nesse processo, especialmente na análise de dados e identificação de padrões.
Mesmo assim, o ponto decisivo será o engajamento da liderança. “O que vai fazer a diferença mesmo é o RH conseguir influenciar a alta liderança e fazê-los entender que saúde mental não é só um benefício, é estratégia. A empresa que não olhar pra isso vai ficar para trás, vai ser exposta, vai perder gente e verá sua reputação ser afetada. Então vai ser preciso coragem pra fazer essa mudança.”
Ademais, Cardoso reforça ainda que “teremos os dados e as ferramentas, mas o que vai importar é como usaremos isso para transformar o ambiente de trabalho – e isso só acontece quando a liderança entra junto.”
Nesse sentido, a psiquiatra Emi Mori complementa, afirmando que, para os planos saírem do papel, é fundamental treinar as lideranças. “Se elas não têm essa consciência da importância da saúde mental, é muito difícil que o processo funcione. Sem isso, tudo trava já no início.”
Assim, a NR-1 surge não apenas como diretriz técnica, mas um possível marco cultural.
“Se a empresa não prestar atenção, isso virá à tona de alguma forma — pode impactar a produtividade dos colaboradores e até ser autuada”, diz a psiquiatra. Portanto, “é um primeiro passo importante. Se não está mudando de outra forma, vamos começar na marra”, concluiu.
Independentemente do prazo estendido, ignorar os sinais de que o trabalho do futuro exige mudanças profundas e urgentes não parece mais ser uma opção. Agora, cabe a cada organização decidir: quer ser protagonista ou espectadora dessa transformação?