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Perícia médica: o mercado em expansão que conecta STF, healthtechs e o futuro da saúde no Brasil

Decisão do STF, digitalização e novas demandas em saúde mental reposicionam a perícia médica como elemento estratégico para empresas, seguradoras e fundos de pensão no Brasil

Gabriela Almeida

A perícia médica no Brasil passa por uma transformação profunda. Antes vista como um serviço burocrático voltado apenas à concessão de benefícios do INSS, ela agora se conecta a debates sobre tecnologia, investimentos, políticas públicas e direitos sociais.

A recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a “alta programada”, a expansão da teleperícia e o crescimento de healthtechs colocam a área no centro de discussões estratégicas que envolvem milhões de brasileiros e movimentam bilhões de reais.

A decisão do STF e o impacto da “alta programada”

Em setembro de 2025, o STF validou o artigo 60, § 9º, da Lei 8.213/91, permitindo que o INSS encerre automaticamente o auxílio-doença temporário após um prazo pré-definido caso o segurado não compareça à nova perícia.

O objetivo da medida é reduzir custos e agilizar processos, mas especialistas em direito previdenciário alertam que ela pressupõe recuperação automática do paciente, o que pode forçar o retorno ao trabalho de pessoas ainda incapazes.
Sindicatos e associações de peritos destacam que isso pode aumentar a vulnerabilidade de segurados em reabilitação ou com doenças de difícil diagnóstico.

Para a médica Tatjana Kluth, especialista em gestão de saúde e perícia, a mudança impõe um novo desafio de planejamento às empresas: “A programação da empresa para o regresso do profissional permite adequação financeira e de equipe. O desafio está quando o segurado não consegue retornar, gerando risco de um ‘limbo previdenciário’ e necessidade de reorganização interna”.

Essa decisão inaugura uma nova fase na relação entre Estado, trabalhadores e empresas, impactando diretamente a gestão de benefícios e a judicialização dos processos previdenciários.

Teleperícia e IA: a transformação digital do INSS

Desde 2024, o Ministério da Previdência autoriza teleperícias realizadas por videoconferência em agências do INSS. Essa modalidade visa ampliar o atendimento em regiões sem peritos ou de difícil acesso. Até agosto de 2025, mais de 158 mil perícias remotas haviam sido realizadas.

Outro avanço é o Atestmed, que permite que laudos médicos para afastamentos de até 30 dias sejam enviados online. Em 2023, mais de 1,3 milhão de pedidos foram realizados, e cerca de 45% foram aprovados sem necessidade de perícia presencial.

Para coibir fraudes, a Dataprev desenvolveu um sistema de inteligência artificial que cruza informações como registro do médico, especialidade, local de atendimento e IP de envio.

Embora reconheça os benefícios da digitalização, Tatjana Kluth pondera que a transição para o modelo digital exige cautela e ainda enfrenta desafios técnicos: “A digitalização facilitou muito a análise documental e agilizou processos. Porém, a teleperícia não deve ser aplicada em todos os casos, especialmente quando o exame físico é determinante para estabelecer o nexo entre pedido, desfecho e sequelas. Além disso, ainda faltam ferramentas de IA robustas e bases atualizadas para apoiar o trabalho técnico do perito”.

Investimentos em saúde digital e o mercado de perícias

O mercado de healthtechs brasileiro está em expansão acelerada, mas os números reais são mais modestos do que algumas estimativas sugerem.

Em 2024, os investimentos no setor somaram cerca de R$ 799 milhões, segundo levantamentos de mercado, e o país contava com aproximadamente 600 startups ativas, com destaque para soluções em telemedicina, gestão hospitalar e monitoramento remoto.

Dentro desse ecossistema, a perícia médica se tornou um nicho estratégico, com empresas como a ExperMed oferecendo serviços para fundos de pensão e seguradoras.

Os ativos do sistema de previdência complementar somavam R$ 3,02 trilhões em março de 2025, representando cerca de 25% do PIB brasileiro, com as entidades fechadas (fundos de pensão) administrando R$ 1,34 trilhão.

Composição do sistema de Previdência Complementar no Brasil (março de 2025) 

Para a especialista, a perícia médica é peça-chave na sustentabilidade financeira do sistema: “A análise imparcial do caso e da documentação garante direitos aos segurados e protege a saúde financeira das empresas e fundos”.

Esse mercado tem atraído investidores interessados em plataformas de teleperícia, auditorias médicas e soluções de IA, transformando a perícia médica em alavanca de eficiência financeira e prevenção de fraudes, e não apenas um custo operacional.

Setor privado: perícia como estratégia de controle de custos

Para as seguradoras, a perícia médica é ferramenta fundamental para evitar fraudes. Estudos indicam que 11% a 12% da receita das operadoras de saúde podem estar ligadas a desperdícios ou irregularidades, o que reforça a importância de avaliações técnicas robustas.

Nos fundos de pensão, a perícia define a concessão de benefícios por incapacidade e impacta diretamente os cálculos atuariais. No caso de falecimento, os valores pagos aos dependentes variam conforme o regulamento de cada plano, não existindo percentual padrão estabelecido por lei.

Assim, no setor privado, a perícia assume papel estratégico na sustentabilidade financeira de seguros e fundos previdenciários.

Saúde mental e perícia psicológica em ascensão

A Norma Regulamentadora nº 1 (NR-01) do Ministério do Trabalho foi atualizada em 2024 e passa a exigir, a partir de maio de 2025, a avaliação de riscos psicossociais, como burnout e depressão, nos ambientes corporativos.

Essa mudança tem impulsionado a demanda por perícias psicológicas, incluindo teleatendimentos. Startups como a MEE (Mental Emotional Equity) já atuam nesse segmento, oferecendo mapeamento emocional e atendimento remoto, integrando saúde mental à perícia médica tradicional.

“As normas buscam a segurança de trabalhadores e empresas, mas a aplicação prática exige preparo. É preciso diferenciar metas de cobranças abusivas e assédio moral, garantindo que os profissionais saibam equilibrar o sistema”, destaca Tatjana Kluth sobre os desafios dessa integração.

Esse crescimento amplia o escopo da perícia, que passa a incluir diagnósticos físicos e emocionais, refletindo uma visão mais completa sobre a capacidade laboral.

Carreira em ascensão: quem são os peritos médicos

A especialidade de Medicina Legal e Perícia Médica tem crescido nos últimos anos, embora ainda haja poucos programas de residência específicos no país.

O salário inicial do Perito Médico Federal foi reajustado em 2024, passando a cerca de R$ 17 mil, podendo aumentar conforme progressão na carreira e gratificações adicionais.

Apesar disso, a demanda ainda supera a oferta: em 2023, havia 1,16 milhão de perícias pendentes, evidenciando a necessidade de mais profissionais e maior eficiência no sistema.

Um programa do governo prevê bônus de R$ 75 por perícia extra, incentivando produtividade. Porém, especialistas alertam que é fundamental garantir a qualidade dos laudos, evitando sobrecarga e erros.

O dilema da produtividade: entre a fila do INSS e a qualidade da perícia

Em 2023, o INSS enfrentava 6,4 milhões de pedidos de benefícios em análise, incluindo 1,16 milhão de perícias pendentes. Com a adoção do Atestmed, mutirões e bonificações, a fila caiu 40,7% em 2024, reduzindo o tempo médio de espera de 70 para 43 dias. Em São Paulo, onde a digitalização avançou mais rápido, o prazo chegou a 25 dias. 

Queda no tempo de espera por perícia médica no INSS (2023-2024)

Essas medidas têm efeito positivo no curto prazo, mas exigem gestão cuidadosa para evitar sobrecarga e manter a qualidade das perícias.

Nesse contexto de busca por eficiência, com a introdução de inteligência artificial nos processos do INSS, cresce a necessidade de auditoria e transparência. Além disso, a própria pressão por produtividade mudou a dinâmica entre peritos e segurados. O grande desafio é equilibrar agilidade administrativa com avaliações técnicas precisas, garantindo justiça nas decisões.

A formação dos peritos passa, então, a exigir conhecimentos que vão além da medicina, incluindo noções jurídicas e tecnológicas para refletir a complexidade crescente da perícia moderna.

Um setor em plena transformação

A perícia médica deixou de ser apenas um procedimento administrativo. Hoje, ela conecta políticas públicas, inovação tecnológica, investimentos e direitos sociais.

Com a alta programada, a digitalização e o crescimento de startups especializadas, o setor se posiciona como elemento estratégico na gestão de benefícios e na sustentabilidade financeira de empresas e do sistema previdenciário.

O futuro da perícia médica no Brasil dependerá da capacidade de equilibrar eficiência, qualidade técnica e proteção social, consolidando-a como pilar fundamental na interface entre saúde e economia.

A Green Rock é uma gestora de investimentos independente, focada em negócios de Venture Capital e Private Equity de alto potencial no setor da saúde do Brasil e toda a América Latina.